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Revista Veja - sobre o livro Sem Anestesia

Revista Veja, páginas amarelas, 19 de dezembro de 2001.

 

Entrevista: Alex Botsaris

Doutores na berlinda

O depoimento de um médico que perdeu seu filho e sentiu na pele como é estar do outro lado do estetoscópio

O médico carioca Alex Botsaris tem 45 anos, vinte de profissão, e passou por uma das experiências mais dolorosas que um homem pode enfrentar na vida. Em 1994, seu segundo filho, Milton, nasceu prematuro e morreu com 10 dias. Botsaris viu-se, subitamente, na condição de paciente: perdido, sem atenção, sem informação. Nenhum dos responsáveis pela UTI, de um dos melhores hospitais do Rio de Janeiro, lhe deu alguma explicação sobre a morte do bebê. A partir desse momento, ele iniciou uma profunda reflexão sobre a medicina que está sendo oferecida hoje. No decorrer de seis anos, fez dezenas de entrevistas, ouviu experiências de colegas, estudou modelos de saúde adotados em outros países. O resultado é Sem Anestesia, o Desabafo de um Médico, recém-lançado pela Editora Objetiva. No livro, Botsaris, que é clínico-geral formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e acupunturista, relata seu drama e discute os caminhos para devolver à medicina sua dimensão humana. Na semana passada, ele recebeu VEJA para a seguinte entrevista.

Veja – Quando soube que seu filho iria para a UTI neonatal, imaginou que ele pudesse morrer?

Botsaris – É uma situação que deixa qualquer um apreensivo. Mas logo depois do parto me tranqüilizei, porque o Milton estava muito bem. Não tinha nenhum dos problemas comuns aos recém-nascidos prematuros, como angústia respiratória. O que me incomodou logo foi a postura distante e impositiva da equipe da UTI.

Veja – Pelo fato de ser médico, o senhor esperava um tratamento diferente por parte de seus colegas?

Botsaris – Claro. Até porque, teoricamente, a comunicação é mais fácil entre médicos, pois nós entendemos a linguagem técnica, já podemos ter passado por situação semelhante. Mas senti uma resistência muito grande a minha presença, a minhas perguntas.

Veja – Quando o senhor se sentiu definitivamente do outro lado do estetoscópio?

Botsaris – No momento em que soube da morte de meu filho. Ele estava bem, já tinha 10 dias, vinha ganhando peso, eu estava cada vez mais tranqüilo. Naquele dia, cheguei para visitar meu menino e topei com uma algazarra na UTI. Depois de muito entra-e-sai e de uma agonia que parecia não ter fim, informaram-me que ele havia morrido. Foi um choque. Nem os médicos acreditavam que o coração dele tinha parado, achavam que era um coma. Disseram que podia ter sido uma infecção. Eu discordei, porque estava acompanhando tudo, como pai e como médico, e sabia que não se tratava disso. Decidi mandar para a necropsia. O resultado veio informando que a causa da morte tinha sido infarto agudo do miocárdio, o que era totalmente surpreendente. Eu havia dito aos médicos que queria conversar sobre o laudo. Mas quando tentei contato só tive silêncio como resposta. Liguei várias vezes, ninguém veio atender e acabei percebendo que não queriam falar comigo. Também não queria voltar àquele lugar. Seria como reviver todo aquele sofrimento.

Veja – Qual o sentimento que predominou quando o senhor soube da morte de seu filho? A tristeza pela perda ou a revolta contra os médicos que haviam cuidado dele?

Botsaris – Foi uma história superdolorosa, eu nem consigo explicar. Como médico, senti-me também responsável pelo que aconteceu. Fiquei totalmente desorientado, não sabia o que fazer, tive muita raiva, queria processar, foi um tumulto emocional enorme. Só quem passou por uma situação dessas sabe a confusão de sentimentos que acontece. Numa hora você tem raiva, na outra fica triste, na outra bate o desespero, a dor. Bate muita culpa também.

Veja – Qual o pior sofrimento de quem está no papel de paciente?

Botsaris – É a sensação de isolamento. Quando qualquer pessoa fica doente – e não precisa ser uma doença séria, basta que você se sinta ameaçado de alguma forma –, ocorre uma espécie de regressão. Começam a funcionar mecanismos que são um pouco infantis. Isso acontece porque você fica diante do desconhecido. É sempre uma situação dramática, principalmente quando o doente é uma criança. A sensação de abandono é terrível. Todo mundo precisa de uma mão num momento desses, mas o médico é cada vez mais incapaz de dar essa mão.

Veja – Por que isso acontece?

Botsaris – São três questões básicas. A primeira é o despreparo. O médico é cada vez mais preparado para exercer funções técnicas. E a medicina tem uma questão humana envolvida. Só que isso não faz parte da formação do médico. Então, se o profissional tem intuitivamente um jeito humano de tratar seus pacientes, ótimo. Se não tem, não desenvolve. A segunda questão é a hiperespecialização. Cada vez mais o médico tem sob sua responsabilidade um pedaço menor do paciente. E não consegue ver o indivíduo como um todo. Está errado. As especialidades têm de existir, óbvio, mas todo especialista tem de ter treinamento em clínica, tem de ser capaz de gerenciar o paciente. O melhor cardiologista do mundo precisa saber tratar de dor de barriga. A terceira questão é a estrutura de remuneração. O médico é também vítima de todo esse processo. É mal formado e mal remunerado. E a função em que ele é mais mal remunerado é justamente a clínica, que é a mais importante. É ali que você está escutando, conhecendo o indivíduo, formando a base de todas as decisões que serão tomadas sobre a saúde daquela pessoa.

Veja – Na estrutura atual do sistema de saúde, com toda a precariedade que se conhece, algum médico consegue ter tempo?

Botsaris – Sim. E o mais incrível é que isso acontece mais no sistema público de saúde, que de certa forma está à frente do privado. Os programas de médicos de família, por exemplo, mostram que não é preciso necessariamente uma grande parafernália tecnológica para dar um bom atendimento. Naquelas filas enormes dos hospitais públicos, muita gente necessita só de atenção. Às vezes, dez minutos de conversa dão uma segurança que tem efeito de muitos medicamentos. Isso não é só aqui no Brasil, não. É uma constatação mundial. Quase 95% dos problemas são fáceis de resolver. São questões simples que, resolvidas, permitem que os 5% realmente graves e complexos sejam atendidos em melhores condições.

Veja – E, no sistema privado, por que boa parte dos médicos dedica tão pouco tempo a seus pacientes?

Botsaris – O principal problema é a lógica de funcionamento dos planos de saúde, que é copiada do modelo americano e permite que o gestor do dinheiro seja o prestador do serviço. É a mesma coisa que uma seguradora de carros ser a dona da rede de oficinas. Na hora que precisar cortar custos, vai comprar peça ruim em vez de peça boa. É o que acontece com os planos de saúde. A estratégia é gastar o menos possível. De um lado, remunerando mal os médicos, sem se preocupar com a qualidade. A maior parte dos planos paga entre 30 e 40 reais a consulta, o que não cobre nem o custo básico de consultório. Por isso o tempo de atendimento é cada vez mais curto. Pela mesma lógica, médicos são descredenciados porque pedem muitos exames. Também há pacientes que não são integralmente atendidos porque precisam de muitos serviços. É um tipo de gestão que foge totalmente aos padrões éticos da medicina.

Veja – Não existe também, contribuindo para todos esses problemas, uma grande arrogância dos médicos?

Botsaris – Muitos médicos se arvoram em semideuses. Agem como se tivessem o poder de decidir quem vai viver e quem vai morrer e por isso se isolam, não querem contato, fogem da dimensão humana da medicina. Isso começa lá com Esculápio, considerado o deus da medicina. Ele era filho de Apolo e tinha o dom da cura. Em muitas civilizações o poder de curar é tido como dom divino. Isso ainda prevalece no comportamento de muitos médicos, com reflexos em coisas aparentemente banais. Receitar remédios ou prescrever exames em garranchos incompreensíveis é uma maneira de não dividir a informação com o pobre paciente ignorante.

Veja – Em sua opinião, algum modelo de saúde funciona realmente bem?

Botsaris – A Inglaterra é um dos países onde a saúde funciona melhor. O sistema é securitizado pelo governo, é regionalizado e funciona em rede de complexidade crescente. O cidadão escolhe um médico clínico de sua região e ele é o gestor de sua saúde. É um generalista que resolve a maior parte dos problemas, tem tempo de acompanhar o paciente e o encaminha a centros de referência em especialidades sempre que isso for necessário. Com isso, o atendimento ganha outra qualidade, porque se cria uma estrutura que impede que o paciente se sinta perdido e isolado.

Veja – Esse modelo funciona de modo diametralmente oposto ao que está montado hoje no Brasil. É possível e desejável caminhar nessa outra direção?

Botsaris – O modelo hoje no Brasil, inspirado no dos Estados Unidos, privilegia o capital. Eu não sou ingênuo, não vou dizer que o capital não tenha função na medicina. É claro que tem, tanto na pesquisa quanto no desenvolvimento tecnológico, e ainda na montagem de redes de serviço mais sofisticadas. Mas é preciso que existam agências de controle eficientes, que consigam estabelecer limites. Os interesses do mercado não podem ficar acima do indivíduo e da vida humana. O cara não pode produzir por 5, vender por 50 e usar o troco no que bem entender. Quando você pergunta a um laboratório quanto custa lançar um remédio, a resposta é 250 milhões de dólares. Mas não se diz que, desse total, 50 milhões são para desenvolver o medicamento e o resto é para marketing. É verba corporativa, patrocínio, amostra grátis, publicidade, verba para financiar congressos, viagens para médicos...

Veja – O senhor mudou sua conduta como médico depois da morte de seu filho?

Botsaris – Sim. Eu percebi que, embora fizesse críticas, estava me tornando um médico burocrático, que tomava sempre o caminho mais fácil. O sistema é muito forte, você vai sendo massacrado. Fiquei muito mais atento à dor e ao sofrimento alheio. E acho que, também, menos arrogante.

Veja – Já cometeu algum erro médico grave?

Botsaris – Todo médico pode errar. E erra. O que não pode haver é negligência, é dar o tratamento errado, ou não tratar, por desleixo e desatenção. Isso eu nunca fiz. Mas é sempre uma situação horrível. A mais grave pela qual passei foi quando me formei, num CTI. Foi um erro coletivo, mas me senti responsável. Entrou uma mulher de 20 e poucos anos com uma pneumonia dupla grave e de repente começou a desenvolver arritmia cardíaca. Usamos uma droga considerada segura. E ela teve parada cardíaca na nossa cara. Ficamos mais de uma hora tentando reanimá-la. A família não quis necropsia, mas é claro que ela morreu por causa da droga. Se não fosse medicada, teria morrido também. Mas não dá para prever. Eu fiquei mal. Passei dois meses superdeprimido e até hoje é uma coisa muito difícil.

Veja – Como reduzir a incidência de erros médicos?

Botsaris – O que aconteceu nesse meu caso é uma questão típica de iatrogenia (mal provocado pela ação do médico ou pelo tratamento prescrito por ele). É uma das questões mais graves e antigas. Hipócrates, o pai da medicina, já dizia que a primeira preocupação do médico devia ser não fazer mal ao doente. Mas esse assunto merece pouca atenção. Todos os casos como esse, em todos os hospitais, teriam de ser investigados. Qualquer reação grave a qualquer droga deveria ser reportada. Mas o médico sozinho não vai fazer isso. Caberia às agências reguladoras normatizar os procedimentos e criar comissões de iatrogenia, como existem as comissões para controle de infecção hospitalar. O objetivo não é punir, mas entender o que aconteceu. O problema é que o médico vê a falha como crime, e é claro que a tendência é ocultá-la.

Veja – E como o paciente pode se defender?

Botsaris – A melhor proteção para o paciente é uma boa relação com seu médico. É importante que seja um médico generalista, que funcione como gestor da saúde. Isso evita riscos desnecessários. Hoje o doente fica tão perdido que tem gente que vai a três médicos e toma os remédios que os três receitaram. Nenhum dos três sabe disso. Isso pode provocar problemas muito graves. A relação pessoal entre médico e paciente também permite decisões compartilhadas. Todos estamos sujeitos a enfrentar decisões difíceis relativas à saúde, porque as situações de risco existem. O paciente tem de saber que ele está passando por esse risco e ter todo o apoio do médico para enfrentá-lo. É uma parceria para vencer a doença, um obstáculo que às vezes parece intransponível.

Veja – Às vezes é intransponível mesmo. No caso de pacientes que sofrem de doenças incuráveis, por exemplo, qual deve ser a atitude do médico?

Botsaris – São vários aspectos. O primeiro é quando e como comunicar a existência de uma doença que ameaça a vida do paciente. Existe o direito de saber, mas existe também a capacidade de saber. O médico tem de ser capaz de avaliar esses dois lados. Há pacientes que não querem ouvir o diagnóstico, e isso tem de ser respeitado. Em qualquer circunstância, no entanto, o médico tem obrigação de permanecer ao lado do paciente, e não pode fazer prognósticos como quem dá uma sentença de morte. Hipócrates já dizia: a passagem da vida para a morte não pode ser tão ameaçadora, porque todos nós vamos morrer um dia. O papel do médico não é só curar, até porque nem sempre isso é possível. É também ajudar o doente a fazer essa passagem, tanto no apoio emocional quanto no alívio do sofrimento físico. No caso da dor, por exemplo, existe uma tendência de ser econômico na medicação. Ora, Deus do céu. Se o cara vai morrer, faz sentido se preocupar se ele vai ficar dependente de remédios?